Este texto nasceu a partir da coluna da Mariliz Pereira Jorge, publicada na Folha de S. Paulo, no último dia 21 de março. O texto em si, no entanto, não seria motivação suficiente se eu não estivesse, há tempos, ouvindo por aí o mesmo barulhinho proposto no que a jornalista colocou naquela página. Aqui, preciso dizer e salientar que não conheço e não acompanho o trabalho da Mariliz e que, independentemente disso, eu não tenho qualquer intenção de atacá-la, nem desejo que alguém o faça. É triste que eu tenha que explicar isso, mas eu sei e você sabe que é preciso. Ela tem direito de expor suas ideias no espaço de grande alcance que lhe foi garantido. Eu faço o mesmo aqui, neste espaço gratuito, independente e de pouco alcance.
Pois bem, li e reli a coluna e vejo algumas linhas meio desastradas, além de um ponto de concordância, vou falar de alguns.
Não vou me aprofundar demais na explícita frase de que a culpa é nossa pelo suposto sentimento de exclusão dos homens porque, enfim, não vou, pelo amor de deus. Entendo o clickbait do título, já trabalhei em sites de notícias, sei o quanto um título vale. O que penso é que quando centenas de mulheres te dizem que não é bem por aí e, pior, quando homens se levantam pra dizer que não, não se sentem excluídos pelo feminismo, pelo contrário se sentem acolhidos pelas feministas ao redor, então é hora de pegarmos a nossa ideia e encará-la dando dois passos pra trás pra ver melhor. Os homens nos comentários têm razão. É isso que nós fazemos, sistemática e culturalmente: nós os acolhemos. Venham como vierem, com a roupagem que quiserem, com o mínimo esforço que fazem, serão acolhidos. Essa é a nossa especialidade, salvar os homens, baixar a guarda.
O ponto que mais me incomoda no texto, porém, é uma tentativa velada – talvez não tão velada assim – de adestramento das mulheres na luta feminista. Isso não é novidade, mas está ficando mais sofisticado. Explico e exemplifico. Um. Recentemente estive num bar aqui em Londres com algumas amigas. Inteligentes, modernas, bem-informadas, atentas. Papo vai, papo vem, aconteceu de uma delas dizer, com todos os caracteres, que estava na hora de a gente amenizar o discurso porque os caras estavam muito acuados. Outra amiga concordou. Disse que os rapazes estão perdidos, assustados e não é por aí que vamos conseguir grandes coisas. Tem mais: que os caras legais não merecem isso. Desse jeitinho. Eu, sentada, prestes a sofrer um choque anafilático. Fiquei zonza, baixou minha pressão. Pensei não ter ouvido o que ouvi, achei que estava zureta. Mas foi isso mesmo.
Dois. Ano passado, postei no feed do meu perfil no Instagram sobre alguns dos muitos assédios sexuais que sofri quando criança. Terminei dizendo alguma coisa como ‘o inferno vai ser pouco’, algo do tipo, nem lembro, sei que tinha infernos e diabos no meio. Pois me apareceu uma bendita para dizer que meu texto era comovente e que ela sentia muito, mas que eu não precisava ter escrito a parte da maldição porque ninguém ganha nada com isso. Hunrum, ela disse. Sem se dar conta de que eu, uma mulher que, quando criança foi vítima de diversos assédios, não queria, naquela altura, ganhar nada. Eu não estava num tribunal pedindo uma indenização ou a cabeça pingando sangue dos homens adultos que me assediaram quando eu nem peito tinha. Eu só queria falar. Pela primeira vez. Queria falar e expressar minha raiva e dizer que merda ter que viver com essa memória que já ganhou roupa nova umas mil vezes, e saber que minha mãe passou pelo mesmo e minha vó e minhas sobrinhas e a filha que está neste momento na barriga da minha amiga, coitada ainda nem nasceu, já passou pelo mesmo, pois eu sei, vim do futuro avisar. Mas, shiii, eu tenho que falar baixo, escolher boas palavras, não invocar Satanás, e não deixar ninguém desconfortável. Para que os homens, do alto dos seus sólidos privilégios, se sintam confiantes o suficiente para sentar ao nosso lado. Se nos comportarmos bem.
Com outras palavras, essa ideia está camuflada no texto da Folha e no remendo que a jornalista fez em seguida. A ideia de que ou ajustamos o volume – ou somos mais estratégicas, ou mais diplomáticas, ou mais agregadoras, dá tudo no mesmo - ou a chibata vai continuar comendo no nosso couro. E isso é perverso.
Nem tudo é discordância, porém. Concordo: sim, os tempos são outros (ainda bem), sim, os meninos estão desbaratinados e isso é péssimo, sim, vamos ter que – sociedade em geral - incluir mais essa preocupação na nossa lista de atenção. Também concordo – embora seja chover no molhado – que não tem jeito de mexer nas estruturas de opressão de gênero sem a participação dos homens. Tudo certo. Eu só não entendo, e genuinamente não entendo, qual a relação entre isso e a afirmação que o feminismo errou. Se for só pra pescar cliques, ok, entendo, mas aí lamento, porque precisamos de algum limite neste aspecto.
Existe uma diferença bem demarcada entre mulheres no contexto social e mulheres enquanto classe. Eu, indivíduo social, tenho um companheiro (homem), melhores amigos (homens), irmãos (homens), tios (homens), sobrinhos (homens). Amo todos, estou com eles, ando ao lado deles. Também tenho uma lista de artistas e profissionais (homens) que admiro. E tenho colegas e leitores, com quem tenho excelentes trocas e que faço questão de ter comigo. Com esses caras divido a vida, em alguns me inspiro, converso, chamo para perto, agrego, debato, acolho e só encosto a faca no pescoço de um deles se precisar. Assim são todas as mulheres feministas que conheço, iguaizinhas.
Mas existe eu, e nós, enquanto classe. Enquanto classe oprimida. Enquanto testa com alvo em tinta fresca. Enquanto a minoria retumbante pois em tudo que é lugar está ruim pra nós. Porque é a opressão de gênero que sistematiza as demais formas de opressão (quem está dizendo não sou eu, é a bell hooks no Feminismo É Pra Todo Mundo, e a Rita Segato aqui, peço respeito. E daí que, a partir deste lugar, não me cabe condescendência com a classe homem. Com nenhum deles, nem com os que eu amo. Nem com seu filho que é fofo, nem com seu irmão que é um doce, nem com seu pai que é o cara mais gente boa do mundo, o meu também era. A classe homem não se divide entre maus e bons porque essa divisão, na vida real, é falha e confunde a gente. A série Adolescência, no caso, é sobre isso (também sobre isso, digo).
Nós, mulheres e meninas, também estamos acuadas (há milênios), também estamos assustadas (há zilênios), estamos perdidas (desde sempre), estamos, inclusive, implorando faz tempo pelo básico: homens, parem de nos matar. Olha a bagunça que é nos pedir para lidar com essa ameaça e ainda ter que colaborar para que ela não se concretize. Vê só que doideira.
E se você não está convencida desse absurdo, pergunto: você imagina sugerir que alguma outra classe historicamente oprimida faça o mesmo? Imagina essa classe bradando publicamente que seu movimento em questão errou em - no meio da luta - não educar os opressores e vamos ter que ajustar isso aqui? Pois imagine. Escolha uma minoria e desenhe essa cena. É torta demais, né? Então por que que com o feminismo virou aceitável dizer isso? E ainda bater no peito, orgulhosa da ideia vejam como meu feminismo é superior ao de vocês que ainda não entenderam como se faz.
As falhas no feminismo são enormes. No feminismo branco, no feminismo cisgênero. Mas essas falhas são discutidas num percurso feminismo-feminismo. A falha no sentido feminismo-machismo não existe. A ideia é uma anomalia.
...
Por fim, porque já me estendi demais, trago aqui o simpático tema “caras legais” que nem está na Folha, foi trazido naquele papo com as amigas no bar. Ah, porque os caras legais não merecem. Mesmo? Os caras legais estão fazendo o que pra virar essa tapioca? Sendo legais como? Não dando tabefe na nossa cara e tratando a gente bem? Massa, obrigada pelo básico. Eu quero saber é o que esses caras estão fazendo meeeeeesmo. Porque os red pills, calvos da Campari e filhotes de Andrew Tate estão aí, recrutando meninos para o time do horror o tempo todo, dando duro, trabalhando pesado, investindo forte, inclusive dinheiro muito. E os legais estão se mexendo em que direção? Pelo que sei, estão só – raramente - compartilhando uns posts pró-feministas nos stories, lendo uns “livros de mulher” às vezes, dividindo as tarefas de casa e pedindo aplausos. Pois olhem, estou passando pra dar um recado: tá pouco, precisamos de mais.
Precisamos que entendam que o machismo é ruim pra vocês também e pra os vossos filhos e isso está cada vez mais claro. Precisamos que vocês mergulhem do nosso lado de cabeça. Precisamos que vocês não arredem do pé dos pequenos para que eles não sejam iguais ou piores do que vocês. Precisamos que vocês marchem do nosso lado nas passeatas. Que votem a nosso favor. Que cobrem dos governos junto com a gente. Que cobrem das escolas junto com a gente. Precisamos que vocês – vou puxar a sardinha aqui pra o meu lado rapidinho – apareçam em eventos de escritoras porque fica feio demais pras vossas latas nunca irem aos nossos eventos, todo evento só tem mulher e a culpa não é minha, nem delas, é de vocês somente, pois a porta está aberta e o convite foi feito, em nenhum convite está escrito “só entra mulher”.
Precisamos que vocês se olhem nos olhos uns dos outros e pensem: essa bronca é nossa, bora resolver. Precisamos que vocês cheguem perto, peguem a sua parte e façam, para que o maior jornal do país nunca mais publique um texto jogando mais essa bomba no nosso colo. Somos nós que precisamos de um pinguinho de sossego, a gente não aguenta mais.
Foto: peguei no Pinterest, no perfil dessa pessoa aqui Theni Sidiropoulou.
Olha so que conveniente jogar a responsabilidade de educar o opressor no oprimido... A gente ta dizendo desde sempre que o machismo tambem oprime os homens, mas a gente nao ta nem resolvendo a opressao que nos sofremos, vai resolver a deles? To fora! Isso sem falar que a gente ainda ta tentando educar um monte de mulher que da suporte ao sistema.
Amor, com tanta lacração, de todas as formas e lados, eu vivo repetindo: eu quero ver vc se comprometer (começo dizendo pra mim, inclusive). E, além do seu ponto de vista, teu texto me traz coragem. Obrigada por não se acuar em rebater PUBLICAMENTE um texto e ideais que nos atrasam e empobrecem. Obrigada por se comprometer e dar a cara à tapa, mesmo diante de um veículo nacionalmente conhecido e de amizades que vão se ver aqui nas tuas palavras. sigo te amando e admirando.