Acho que minha prima Mara tinha 5 anos quando morreu tragicamente. Eu devia ter 6, não sei ao certo, mas ela era um ano mais nova do que eu e era também minha única prima na época. Chuto que eu tinha seis anos e não sete porque, na minha cabeça, há uma certa quebra na infância aos sete anos. Não sou especialista no assunto, não tenho filhos, mas observo as infâncias ao meu redor, além de conservar pedaços de memória da minha própria. Aos 7 anos parece que já sabemos muito mais coisas, que a fala é bem melhor, mas posso estar enganada e esse é apenas o jeito com que eu me via naquela idade: uma criança pequena em mais de um sentido.
Foi num domingo, disso eu tenho certeza porque os domingos têm a mesma cara inconfundível, se parecem demais. Também sei que, embora morasse em outro bairro, ela estava – junto a outras pessoas, claro – a caminho da minha casa e a tragédia aconteceu não muito longe da minha rua. Neste dia, eu e meus irmãos estávamos com a babá. Quer dizer, deixa eu consertar, não era bem uma babá, apenas, era aquela conhecidíssima figura do nosso Brasil, a empregada doméstica que fazia tudo e cuidava de nós todos e morava na casa com a gente, no modelo Que Horas Ela Volta?. Sei que ela estava lá porque, primeiro, ela sempre estava e, segundo, porque era função dela não me deixar sair para ver o que tinha acontecido.
Como a minha casa era relativamente próxima ao local da morte, começou a chegar muita gente, amigos, vizinhos, família. Começaram a falar do corpo, um corpo, tinha um corpo, fiquei meio perdida na conversa e ninguém ia parar nada naquela hora para me explicar qualquer coisa, claro. Mesmo assim eu devo ter perguntado, porque lembro de alguém – não sei quem – me dizer: a Mara morreu. Eu não entendia direito o que era morrer, mas eu entendia que era ruim demais.
Mais detalhes não tive, nem tenho. Sei o que aconteceu com ela, isso me disseram, mas como exatamente aconteceu, como foi o depois. Não sei. Até hoje. E também não me deixaram ver o corpo, claro, nem ir até o local, claro. Eu e meus irmãos criamos diversas teorias, histórias escabrosas, porque pescar informações soltas e montá-las na nossas cabeças era tudo o que tínhamos.
Lembro que escureceu rápido e por horas (horas mesmo?) não parou de entrar gente em casa. Eu já estava na cama, mas ouvia os barulhos e conversas na sala. Até que acalmou e, horas (?) depois, minha mãe – que era tia da minha prima, irmã do pai dela – voltou pra casa, dopada, os remédios não fizeram efeito, ou fizeram, ela chorava e, em determinado momento, desmaiou. Sei porque, tarde da noite, eu não conseguia dormir, a porta do quarto estava aberta e eu vi minha mãe caindo no chão desacordada – ali eu pensei que fosse a morte de novo – mas uma tia dela veio acudir e minha mãe acordou, para o meu alívio. Eu não chorei e esse detalhe é bem curioso porque eu sou muito chorona, choro demais, por qualquer coisa, o tempo todo, desde sempre.
Teve velório, eu não fui. Teve enterro, eu não fui. Eu só tinha uma frase: a Mara morreu. E a partir daí, só deus sabe. Minha prima tinha morrido e não virou estrelinha, pelo menos não foi o que me disseram, também não me foi passada a informação de que ela pode ter virado anjo e que mora no céu hoje e está lá, olhando por mim. Nada disso. Ela morreu na rua e depois foi pra debaixo da terra e lá ficou, não voltou mais. Quer dizer, há controvérsias.
Porque eu tenho certeza de ter visto a minha prima muitas vezes no meu quarto, ainda naquela antiga casa. Especificamente ao lado da porta, olhando pra mim. A visita era pra mim, não há dúvidas, porque, enquanto meus irmãos dividiam um quarto, eu tinha outro só meu. Foram várias as vezes, sei que vi, só não sei se vi o que criei ou se ela estava lá mesmo, não consigo dizer, mas tenho uma teoria. Eu venho de uma família predominantemente masculina. Eu já era a única filha em meio a irmãos, mas quando ela se foi eu também virei, por anos, a única neta em meio a netos, a única sobrinha em meio a sobrinhos, a única prima em meio a montes de primos. Ela se foi e me deixou sozinha com os meninos e, apesar de não lembrar de tanta coisa assim, lembro que achei péssimo. Talvez por isso eu a visse parada do lado da porta, porque eu e ela sabíamos que não estava bom, nem pra ela, nem pra mim.
Outra coisa que recordo – e talvez por isso vim escrever esse texto – é que não falávamos dela. Não era comum que falássemos o nome dela (pelo menos não quando eu estava por perto), ninguém discorria sobre o que aconteceu, ninguém, jamais, trazia esse assunto à tona na frente do meu tio, para poupá-lo. Entendo. Mas também entendi, já lá na época entendi, que morrer era simplesmente nunca mais ser um assunto. Esse trato silencioso funcionou muito bem porque no decorrer dessas décadas, mesmo tendo visto minha prima aquelas vezes dentro do meu quarto, quando criança, nunca falei dela, e apenas mencionei seu nome de novo esta semana, quando perguntei à minha mãe se ela lembrava a data exata da morte da Mara. Ela não lembrava da data.
Até que minha prima parou de ir ao meu quarto e também eu cresci e essas duas coisas não devem ser coincidência. Nunca havia pensado em escrever sobre isso até semana passada – e este é outro detalhe esquisitíssimo considerando que eu quero escrever sobre tudo –, quando fiz uma lista de possíveis assuntos que traria pra cá, descartei todos, exceto este.
Minha prima morreu naquela rua e depois foi morrendo ao longo dos dias e está morta até hoje. E acho que eu queria ter falado dela, queria ter falado daquele domingo, mas só me restou ficar encarando seu rosto pequeno e inexpressivo na porta do meu quarto, em silêncio. A morte nada mais é do que isso, afinal. A morte é não dizer mais nada.
Foto: Pinterest, sem autoria.
que lindeza de texto, Lori. se a morte é não dizer mais nada, é também seguir vivo pela palavra do outro. de repente ela segue um pouco viva em ti, a única outra menina da família, e alguém cuja vocação é continuar a contar histórias.
eu acho que criança não foi feita pra morrer, tá errado quando acontece e fica aquele engasgado impedindo a gente de agir direito. eu entendo quem não consegue lidar, até a criança morta vai atrás do futuro prometido e passa um tempo admirando a prima que ficou.